Chamada para publicação – Revista Abusões

26/05/2020 14:27

Dossiê “Ficções e epidemias – paisagens, políticas e catástrofes”

Havia algum tempo que o mundo não era atingido por uma pandemia como a do novo coronavírus, o SARS-CoV-2, ao menos não com os efeitos experimentados. Nem a mais recente contaminação global, a de H1N1 em 2009, demandou as mesmas práticas de biossegurança da atualidade, tais como o isolamento social, a quarentena e o lockdown (bloqueio total). O temor do contágio pela covid-19, no entanto, pode encontrar algum paralelo com a explosão do HIV/AIDS no início dos anos 1980 – o vírus SARS-CoV-2 provoca uma tempestade inflamatória no corpo e caracteriza-se por ser uma doença multifásica que pode ser fatal. O comparativo igualmente pode ser aplicado às informações pouco acuradas sobre formas de transmissão e de tratamento, condições que culminam na severa resposta aos casos de pacientes testados positivos. Não é mensurável, nesse cenário de contágio, o impacto emocional produzido pela proibição de ritos funerários de entes queridos – ou mesmo a forçada restrição de contato com familiares e amigos. Ao passo que a AIDS fornecia repleta iconografia da doença, a covid-19 oferece a iconografia da proteção: álcool gel, máscaras faciais, luvas descartáveis, termômetro infravermelho, face shield. No que diz respeito a enfermidades disseminadas amplamente, é possível destacar, ainda, o aspecto político/religioso envolto na construção imaginária das doenças, no qual se configuram preconceitos, formas de opressão e instâncias de exclusão: a AIDS recebeu o epíteto de “peste gay”, o H1N1 chegou a ser descrito como doença dos “chicanos” e o SARS-CoV-2 é enquadrado como “vírus chinês”. Das pragas do Egito passando pela peste de Édipo Rei, pelos vampiros do medievo, pelos soropositivos e pelas vítimas de covid-19, a história não deixa de registrar bodes expiatórios, os culpados dos males coletivos, sinal de um domínio ideologicamente contaminado pelo religioso, campo discursivo que vê a doença como punição. Há de se observar, também, uma certa geopolítica das paisagens das doenças que as posicionam em espaços a serem vigiados e controlados – tais como a América Latina, a África e a Ásia – pelas potências hegemônicas, em uma luta pela manutenção do poderio. O cenário de epidemias e de pandemias constrói, como se vê, uma paisagem do medo (Yi-Fu Tuan), confere abertura para metáforas (Susan Sontag), remete a contextos de expressão evidente da biopolítica (Michel Foucault, Roberto Esposito) e encena a catástrofe da necropolítica (Achille Mbembe).

É curioso, portanto, que A peste, de Albert Camus, datada de 1947, torne-se hoje, em meio ao distanciamento imposto pela covid-19, um tipo de best-seller, leitura de entretenimento. Na mesma esteira seguem projetos literários que versam sobre doenças reais ou imaginadas, em contextos históricos ou fictícios, por meio de descrições realistas ou fantasistas, das quais merecem destaque: Um diário do ano da peste, de Daniel Defoe; Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago; O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Marquez; O último homem, de Mary Shelley; Eu sou a lenda, de Richard Matheson. No cinema chama a atenção que um filme como Contágio (Contagion, Steven Soderbergh, 2011) receba o status de premonitório e tenha se tornado um sucesso repentino nos serviços de streaming. Por outro lado, não se pode deixar de mencionar que a correlação entre doença e monstruosidade é nativa do gênero de horror (Noël Carrol) e amplamente ressignificada nos corpos dos monstros. Poderia até mesmo ser sintomático de uma sociedade doente que um dos jogos mais baixados nas plataformas virtuais nos dias de hoje seja Plague Inc, narrativa que dá vitória àquele que destruir a humanidade espalhando um vírus mortal. Este dossiê pretende abarcar trabalhos que versem sobre o campo das epidemias/pandemias em suas mais diversas frentes, podendo evocar cenários diversos (gótico, fantástico, insólito ficcional, apocalíptico, pós-apocalíptico) e articular perspectivas variadas no enquadramento de ficções sobre contágio e contaminação, nos mais diversos media (literatura, teatro, cinema, televisão, streaming, videojogo, quadrinhos etc.).

Submissões até 4 de outubro de 2020.

Organização:
Flavio García – UERJ
Marcio Markendorf – UFSC
Renata Philippov – Unifesp

Mais informações:
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/abusoes/announcement/view/1092