EXISTE, LOGO ESCREVE” PROPÕE A LITERATURA COMO ABERTURA AO INUMANO

18/09/2017 14:31

Ao escrever Existe, logo escreve – o inumano na arte-literatura, a jornalista, professora, ensaísta e escritora Raquel Wandelli aponta a literatura como um lugar onde a humanidade problematiza e transgride sua incapacidade de comunicação com o mundo e com os outros seres. No paradoxo de ser o instrumento que marca a fratura entre letrados e iletrados, a literatura é também a grande fábula de cura dessa ferida profunda, o lugar privilegiado onde o humano pode se comunicar com os animais, os objetos, as plantas. Pode vencer o silêncio ou a mudez que ele próprio impôs ao mundo e ao seu próprio semelhante. De saída, a obra se propõe a pensar a filosofia e as artes como laboratório para o combate à ideologia maior, da qual se originam todas as formas de opressão do homem contra as outras espécies ou do homem contra ele mesmo, o antropocentrismo.

“Ver, pensar e escrever o outro inumano é postular um pensamento em crise, no qual o homem não é mais a origem e o fim”, propõe a obra desde a sua introdução, acrescentando que essa crise é da ordem fundante da história, da cultura e da ontologia narcísica de uma espécie que se autodeclarou superior às outras. Se o humano é muito mais do que ele mesmo, a arte se faz vida quando o artista perde a posição solar e se lança para o “ser selvagem” de sua existência. A autora mostra como a literatura destrona o homem do centro do universo, mas recusa a premissa de que o escritor dá voz aos anônimos ou aos seres emudecidos. Com ela compreendemos que são antes as existências politicamente minoritárias que dão voz ao escritor, se a gente considera com ela e seus autores que a maioridade dominante no mundo não tem o que dizer.

Publicado pela Editora da Universidade Regional de Blumenau (Edifurb), Existe, logo escreve será lançado no dia 21 de setembro, às 19 horas, na Fundação Cultural Badesc, em noite de autógrafos com fundo musical da Banda Felixfônica, de Guilherme Gouvêa e recital de passagens do livro. A obra se desenrola como um ensaio de rigor teórico e de teor fiolosófico, ético e literário, mas mantém do início ao fim uma escritura de acabamento poético. A edição marca o trigésimo ano de fundação da Editora, dirigida pelo escritor e professor de literatura Maicon Tenfen. Escrever é inumano, afirma a autora, “é percorrer linhas que escapam e transbordam para todos os lados”.

O livro explora a potência inumana e impessoal da literatura, pela qual o escritor pode devir ou se tornar qualquer coisa, qualquer ser, menos ele mesmo. Esse conceito desenvolvido pelo filósofo Gilles Deleuze em Crítica e clínica norteia a construção da categoria do “narrador-coruja”, inspirada na figura do escritor-repórter errante e observador das sombras da cidade que Baudelaire chamou de flâneur. A autora traça um fio condutor entre o que caracteriza como “narrativas do escuro contemporâneo” dentro da chamada literatura da realidade, na qual o jornalismo nasce desde sempre inseparável da arte narrativa.

Ao enfocar o sentido da visão, a autora faz uma exaustiva cartografia por uma rede de narradores de diferentes épocas capazes de enxergar aquilo que o olhar humano domesticado não vê. Passeia por Edgar Alan Poe, Baudelaire, Walter Benjamin, Fernando Pessoa, João do Rio, Clarice Lispector, Franz Kafka, Guimarães Rosa, Günther Walraff, Hunter Thompson, Mário de Andrade, Gay Talese, Eliane Brum, Rodrigo de Haro, o fotógrafo Antoine D’Agata, entre muitos outros, procurando o traço comum e singular de cada um. “Desde que Restif de La Bretonne propôs em Paris, nas vésperas da Revolução Francesa, a associação entre um repórter e uma ave noturna, essa literatura e esse jornalismo ouvem o chamado do não-contado e do proscrito nas zonas de sombra das cidades”. Entra em ação a coruja, um animal sonâmbulo, observador noctambulista e vigilante como emblema e método do narrador andarilho, ela própria “um quase-invisível”. A coruja é capaz de enxergar, com sua cabeça pivotante, aquilo que a maioria dos passantes não quer ver. Ver é viver, ou como escreve a autora, “quem flana pelas ruas e viaja pelo mundo tende a reconhecer o rosto dos povos”.

Embora concentrada num único volume de 364 páginas, ilustradas com alguns desenhos, gravuras e fotografias, a obra é, na verdade, uma trilogia abrigada sob o manto “Ver, pensar e escrever com(o) um animal”, que intitula os três livros do conjunto. Cada parte enfatiza uma dessas diferentes dimensões da percepção ou do gesto do artista. Com essa forma de organização da obra, a autora realça os múltiplos funcionamentos dos modos de frase que afetam e interrogam a sua pesquisa do inumano, “ora enfatizando o ver, ora o pensar, ora o escrever, mas sempre acentuando a zona de indiscernibilidade entre eles”.

Sob o emblema da coruja, o primeiro livro realiza uma vasta cartografia dos “narradores noturnos” focada na poética de visão que Raquel abstrai do “método coruja”. E também do “modo vaga-lume”, em alusão à imagem proposta por Didi-Hubermann para configurar, na obra do cineasta Pier Paolo Pasolini, um narrador de luzes delicadas, que busca a imagem sobrevivente dos povos em desaparecimento. O devir-animal é acionado pela “potência inumana e impessoal da flânerie”, capaz de desencadear essa visão horizontal e múltipla do narrador que, caminhando a esmo em busca do desconhecido, suspende o olhar centrado no eu para ver o mundo dentro de si. Coruja, lobisomen, vaga-lume: todos esses traços de animal “encorporados” à escritura buscam devolver ao olhar humano a acuidade que ele perdeu. Eles correspondem, segundo Raquel, ao ímpeto da escrita de desvelar-se para as infinitas pequenezas e minoridades do mundo que não são dadas a ver.

O segundo livro (ou segunda parte) dedica-se ao modo de pensar não-antropocêntrico da literatura, começando por abordar o estranhamento não como técnica ou efeito, mas como a condição fundante da arte, que a liberta da familiarização e banalização do mundo pela palavra. Busca em experiências artísticas extra-ocidentais e em teorias não-empobrecidas pelo racionalismo cartesiano uma feliz confluência entre filosofia, literatura e o pensamento ameríndio, no qual a perspectiva do eu e do outro entram em constante troca e transformação. Como na mitologia indígena, a arte está mergulhada na premissa de que tudo no mundo implica um ponto de vista ou “tudo que existe é bom para pensar”, segundo a máxima de Lévi-Strauss. Explorando a sintaxe do mar como método de pensamento na obra de Clarice Lispector, Raquel costura um profícuo diálogo entre a literatura, o perspectivismo ameríndio e o esculturismo africano. Aborda não só os contos e romances mais comentados da escritora, como Água Viva e A hora da estrela, mas também os textos menos visitados, a exemplo de “A menor mulher do mundo” e Assim nasceram as estrelas, no qual a escritora reconta para crianças episódios da mitologia indígena brasileira.

Finalmente no terceiro livro, focado no escrever, Raquel se inspira na sintaxe de vida do escaravelho-barata, evocado por Clarice em Paixão segundo G.H., como emblema da escritura. Nessa última parte, faz uma viagem de vasta erudição por inúmeros poetas e narradores na qual o animal aparece não apenas como metáfora, mas como método de vida e de escrita para concluir que toda existência no mundo é, em última análise, uma biografia que se conta, em referência à ideia do animal autobiográfico de Jacques Derrida. Ou para lembrar Francis Ponge, outra fonte importante do ensaio, tudo que existe além do homem é uma forma de escritura. O capítulo “Morre o autor, nasce a barata” analisa o acontecimento da morte simbólica do autor não só como condição de surgimento da leitura, mas como espaço de abertura para o devir-inumano.

A potência inumana da escritura é compreendida a partir do desencadeamento de devires minoritários que levam o escritor a tornar-se mulher, criança, índio, negro, animal, sempre na direção do menor, do que não foi ainda inventado, nunca na direção do dominante, como analisam os filósofos Deleuze e Guatarri, dois dos muitos teóricos basilares no pensamento da autora. Discute com personalidade o tema do “embate entre a máquina de poder e a máquina literária”, alimentado pela luta entre a doença da dominação, que é um delírio de morte, contra a saúde da resistência, que é um delírio de vida, segundo a célebre distinção de Deleuze.

Esse embate aparece de modo muito eloquente e criativo na análise de “Estado de graça”, texto inclassificável de Clarice Lispector para o Jornal do Brasil, que insinua a oposição radical entre o horror do estado de exceção exercido pela Ditadura Militar e o estado de graça, ensinado ao homem pelos animais, que conhecem melhor do que ele o prazer de estar vivo ou, no dizer de Clarice, a “graça de viver”. Uma questão ética e política atravessa toda a literatura na percepção do inumano: “A relação de embate entre a máquina antropocêntrica e a máquina de guerra da escrita, destruidora de todas as hierarquias e separações entre os viventes”, como sublinha a autora.

Existe, logo escreve é prefaciado pela professora e PHD em educação, Gilka Girardello, que se refere à Raquel como “uma escritora-xamã de pensamento vertiginoso”, reconhecendo-a no termo que a própria autora atribui a Clarice Lispector. Ela enaltece a fértil interlocução que a obra realiza entre Clarice e o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. “É muito feliz a ida da autora às lendas indígenas, contadas por Clarice à luz do pensamento do antropólogo, que resulta em uma crítica acachapante à cultura ocidental vencedora”. Especialista na temática da infância, Gilka chama a atenção para a ousadia e a coragem da autora, ressaltando a “defesa originalíssima que Raquel faz de uma humanidade fundada em uma comunicação radicalmente alteritária”. O prefácio respalda a reflexão que o livro traz: “Se a humanidade dos seres se localiza na relação de uns com os outros, todas as espécies, todas as criaturas passam a fazer parte da infinita pluralidade humana”. Reforça ainda a crítica contundente que a autora expressa contra o senso comum e o vazio perverso do jornalismo comercial contemporâneo, que se afasta cada vez mais dos povos que palpitam no escuro do contemporâneo para se deixar cada vez mais aparelhar pelo poder.

Sempre se valendo do diálogo crítico e criativo com muitos escritores e teóricos, mas evidenciando seu percurso marcadamente autoral, como acentua Gilka, o livro se direciona para um encadeamento do olhar, do pensamento e da gramática do inumano. “Escrever o inumano não é escrever sobre animais, mas fazer operar na escrita um animal”. Afinal, alerta a autora, “um escritor não escreve para leitores previsíveis que vão se reconhecer no espelho da leitura”. A tese do livro é clara: “São os animais que carregam o poeta”, e não o contrário. Desde que o homem escreve o animal e se inscreve nele, “dá a ler uma ordem do fascínio, do medo e da violência, num jogo contraditório entre dominação e encantamento”.

Os papeis sociais exigem das pessoas um porvir definido, enquanto as artes o libertam para o seu devir ou para a sua potência de metamorfoses, nos diz Raquel: “A literatura cruza tudo que escapa à definição solar, tudo que dificulta o fechamento, tudo que é marcado por um devir instável”. Nesse sentido, a escritora propõe a literatura como uma invenção capaz de “libertar a máquina do imaginário do paradigma do homem como figura de supremacia na cultura ocidental: o homem em oposição à mulher e, por diferimento, o homem em oposição ao negro, ao índio, à criança e, finalmente, em oposição ao animal, o completamente outro”. Artífice de uma escrita de acabamento estético e de agudeza ética, ela conclui: “Escrever o inumano é convocar um autor que escreve rasgando a sintaxe como um animal, cavando um mundo dentro de outro, como o carrapato rasga sua sintaxe de vida no território corpóreo do boi”.

O que Raquel Wandelli escreve não lhe pertence, na retórica da própria autora. Em Existe, logo escreve, a pesquisadora adota uma escrita hipertextual no “princípio mais radical e concreto do conceito”. O que isso quer dizer? “Significa não apenas se remeter a outros textos, como um conjunto de nós e links, mas efetivar um apagamento da propriedade autoral em favor da instauração de uma escrileitura realmente coletiva”. Quanto mais a autora investe e acredita nesse aspecto impessoal da escrita, mais a singularidade multifacetada do seu livre-pensar e do seu livre-escrever se lapida, como um diamante, nas palavras de Gilka. “É sempre de Raquel a voz que nos acolhe e conduz, fazendo com que uma leitura tão densa seja refrescante como um galope nas campinas, mesmo quando seja terrível o que se pressente além delas”.

Pequena biografia de uma “escritora-xamã”
Natural de Florianópolis, Raquel Wandelli atua como professora do Curso de Jornalismo da Unisul há quase 20 anos. Especialista em Estudos Culturais, é mestre em Literatura, com a dissertação A reconstituição do corpo-livro nas narrativas hipertextuais, que aborda de modo pioneiro o conceito de hipertexto em narrativas de formato impresso. De sua autoria publicou Leituras do hipertexto: viagem ao Dicionário Kazar, coedição entre a Editora da UFSC e a IOESP (2004), uma das obras mais consultadas do país em relação a um modo de escrita expansível, que desorganiza a ordem linear da narrativa com a lógica da conectividade e que, antes da invenção da internet, já fazia parte de célebres experiências literárias em papel. Doutora também em Literatura, defendeu em 2014 a tese Ver, pensar e escrever com(o) um animal; devires do inumano na arte-literatura, que analisa abertura ao inumano pela escrita. Entendida pelos filósofos François Lyotard e Gilles Deleuze como a experiência do ser anterior ao processo de hominização, a inumanidade é um estado de múltiplas possibilidades de devir que permanece na vida adulta, feito uma camada oculta ou obliterada. Assim, o vir-a-ser animal, criança, mulher, selvagem, e tudo o que desvia do modelo solar de homem, reprimido para que a pessoa possa atuar dentro do padrão humanista, escapa em algumas esferas, como a infância, a loucura, a filosofia ou as artes.
Jornalista concursada do INSS, foi assessora de comunicação da Secretaria de Estado da Educação e também da área de Cultura na UFSC. Integrante atual do Coletivo de Mídia Jornalistas Livres, trabalhou em jornais diários de Santa Catarina, incluindo O Estado, A Notícia e Jornal de Santa Catarina. Autora de inúmeros artigos em livros, revistas e publicações acadêmicas sobre cinema, literatura, filosofia estética, cultura e comunicação, também incursiona no campo da ficção. Conquistou diversos prêmios de contos, poesia, crônica e conto publicados em revistas e livros diversos.

Resultado de pesquisas no doutorado do Curso de Pós-Graduação em Literatura da UFSC, complementadas no Centro de Estudos de Literatura Comparada da Université de Paris 3 (Sorbonne Nouvelle) e no Projet Animot da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, o livro é também fruto das reflexões sobre sua prática no ensino de jornalismo. Em quase duas décadas de magistério na Unisul, realizou dezenas de projetos de vivência com os alunos em coletivos que lutam pela sobrevivência, nominados por ela como povos de resistência. Moradores de rua, comunidades rurais, urbanas e tradicionais que preservam modos de vida singulares, ocupações de sem-teto ou sem terras, comunidades alternativas, usuários de drogas, povos do mar, povos encarcerados, povos dos manicômios judiciários, idosos em casas de acolhimento, quilombolas, adolescentes em conflito com a lei ou com perda de vínculo familiar, sobreviventes do holocausto hanseniano. Todos esses coletivos minoritários que compartilham uma luta em comum e não correspondem a um conceito geográfico de povo são abraçados pelo projeto que ela chama de “Jornalismo de Povos”. A tarefa dessa literatura da realidade é, para a escritora, trazer de volta temas e povos que desaparecem para os livros e para os jornais.